Final dos anos 80. Lembro que era manhã, fazia sol e estávamos na fase
pós-resultado do Festival de Cannes, sábado ou domingo, quando todos relaxam
(exceto os estressados crônicos), preparando bagagens e espírito pra voltar ao
Brasil ou esticar viagem pela Europa. Éramos cerca de uma dúzia de brasileiros
recém-esbarrados na Croisette e decididos a tomar um café, Perrier ou
refrigerante, mais pelo pretexto pra bater um papo do que por real necessidade
de matar a sede ou jogar cafeína extra no sangue.
Ocupamos duas mesas no terraço do Carlton e adicionamos outras cadeiras ao redor, incrementando o ambiente
chique do hotel com um jeitão de boteco. Mais do que conversar, ríamos de
montão, e alto, numa época em que nem se sonhava que o Brasil chegaria à
invejável posição internacional que ostenta hoje. Não creio que tenham nos
percebido como latinos inconvenientes, talvez um pouco excêntricos, e
certamente muito divertidos. Brincando sem maiores pretensões, contagiamos a
solenidade clássica daquele lugar, e os frequentadores pareciam gratos por
isso.
Quem lê esse início de descrição pode imaginar que a palavra circulava
com fluidez entre nós, sendo distribuída em fatias de tempo equivalentes pelos
integrantes do grupo. Nada disso. Havia um personagem que concentrava as
atenções, transformando todos os demais em tietes coadjuvantes. Tudo o que ele
dizia, independente do fosse, se tornava mais interessante e mais engraçado, só
porque tinha sido dito por ele. Salvo honrosas exceções, apenas a voz dele era
ouvida, o que não significava nada além de sua natural capacidade de contar bem
as histórias de seu inesgotável repertório.
Na mesa vizinha, um grupo de senhoras turistas ria junto com a gente
mesmo sem entender nada de português, pura osmose. Quando me levantei pra ir ao
toilette, uma delas me abordou, perguntando se aquele homem que nos entretia
era um artista. Na verdade era. Mas preferi explicar da maneira mais racional,
prática e leiga que me ocorreu: “Não, senhora. Somos todos publicitários brasileiros,
ele é o mais famoso do país, e um dos mais premiados do mundo. Pra nós, é uma
espécie de popstar.”
Festivaleiro de primeira viagem, participar daquele momento fechava
minha semana na Côte D’Azur com chave de ouro. O sujeito era meu ídolo. Só o conhecia
de palco e júris, vendo-o passar o rodo em tudo que era troféu, medalha e
diploma. E logo na minha estreia, imagina só, eu havia assistido duas
categorias inteiras de filmes ao lado dele, com direito a troca de impressões,
informações de bastidores e coisas do gênero. Muita sorte começar daquele jeito.
Relembrando a cena agora, tomo um susto ao enxergar ali alguém que
parece não combinar com o universo publicitário. Refiro-me a Platão.
Calma!, não estou surtando. Raciocine comigo:
a) Platão era um grande mestre frequentemente cercado de seguidores
ávidos por alguma fração do seu conhecimento, certo? Bem parecido com o que
vivíamos ao redor daquela e sabe-se lá de quantas outras mesas ao longo da
carreira do Washington (É a primeira vez que o nome dele aparece neste texto. Obviamente
desnecessário, mas ajudou no ritmo da frase).
b) Platão desenvolveu a Teoria das Ideias. Sem pretensões acadêmicas, o
fenômeno W.O. no mercado publicitário brasileiro alterou significativamente a
vida dos profissionais de criação e abriu os olhos dos anunciantes para o valor
de nossas ideias. Se uma teoria a respeito não chegou a ser escrita, não tenho
dúvidas de que na prática a coisa aconteceu de forma tão convincente que
dispensou o blá-blá-blá teórico.
c) Platão e Washington, cada um a seu tempo e jeito, foram muito
próximos de Sócrates. A diferença, em prejuízo de Platão, é que o Sócrates dele
não teve nenhuma influência na histórica formulação da Democracia Corinthiana.
Ok, talvez tenha viajado demais. Na verdade, o principal motivo que me
fez embarcar nesse tema platônico foi algo bem menos cabeçudo do que a explicação
costurada nos três tópicos anteriores. Indo direto ao ponto: nunca trabalhei
com ele, sempre o admirei à distância e, mesmo correndo por fora e observando
de longe, aprendi um bocado com o cara. Simplinho assim.
Daquele evento no Carlton em diante, estive com o Washington em
diversas ocasiões, mas nunca cheguei a comentar o efeito Valisère que a
primeira risadaria olivettiana à francesa produziu em mim. Nossa permanência no
café do hotel não chegou a duas horas, mas foi mais do que suficiente. Como já
dizia Platão, “você pode descobrir mais
sobre uma pessoa em uma hora de brincadeira do que em um ano de conversa”.
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